domingo, 28 de junho de 2015

Condução sob o efeito de substâncias psicoactivas
Rocha Almeida

«A influência do álcool e de outras substâncias psicoactivas nas capacidades para conduzir veículos motorizados, como factores causais ou que contribuam para a ocorrência de acidentes de trânsito, tem suscitado grande número de estudos clínicos.

Importa salientar que vários estudos mostram que conduzir sob o efeito de substâncias psicoactivas ilícitas pode afectar a condução de várias maneiras: tempos de reacção mais lentos, comportamento errático e agressivo, fadiga, dificuldades de concentração e, mesmo, quadros mais graves como crises de pânico, tremores, tonturas ou paranóia.

Conduzir após o consumo de substâncias psicoactivas é frequente em Portugal. Segundo o estudo epidemiológico realizado em contexto rodoviário sobre a prevalência de álcool, drogas e alguns medicamentos em condutores de veículos da União Europeia, o projecto DRUID 2008/09, Portugal apresentou a quarta maior prevalência de qualquer substância psicoactiva (10%), superior à média dos condutores dos 13 países europeus incluídos no estudo (7,4%). Ainda segundo o estudo DRUID, a prevalência de opiáceos nos condutores portugueses foi de (0,2%) superior à média europeia (0,1%). O consumo de opiáceos causa alterações a nível cognitivo e psicomotor, mas estes efeitos estão dependentes do tipo e da dose do opiáceo consumido. Na verdade, temos de ter em consideração que para além do consumo ilegal de opiáceos, o mais frequente no nosso país é o consumo de heroína, há ainda um conjunto de medicamentos contendo opiáceos e que são utilizados, por exemplo, na patologia da dor ou da tosse, e como terapêutica de substituição nas situações de dependência (metadona ou buprenorfina). Alguns destes fármacos, administrados isoladamente ou em associação, podem influenciar negativamente as capacidades cognitivas e motoras para a condução de veículos motorizados, sem que estejamos na presença de um consumo ilícito.

Durante as décadas de 80/90 e ainda 2000, o consumo de opiáceos (heroína) teve um grande impacto na sociedade portuguesa. Os tratamentos de substituição tiveram e continuam a ter um importante papel para se conseguir tratar este grave problema e a OMS inclui os agonistas opióides, metadona e buprenorfina, como medicamentos essenciais por satisfazerem as necessidades prioritárias de saúde da população, por trazerem benefícios para a saúde individual e pública, pela evidência científica da sua eficácia e segurança e pelos benefícios custo/eficácia. Segundo o relatório da OEDT estavam em tratamento de substituição na Europa em 2012 cerca de 734 000 consumidores de opiáceos. Em Portugal serão mais de 20 000 os utentes em programas de substituição sendo que perto de 67% estão em programa de metadona.

Sabemos que muitos deles são condutores de veículos motorizados e daí haver uma investigação alargada à volta dos efeitos da metadona e da buprenorfina sobre alterações a nível psicomotor e o risco de acidentes. Os estudos revelam que o consumo de opiáceos afecta áreas importantes a nível cognitivo relacionadas com a capacidade de concentração e memorização, impulsividade e flexibilidade cognitiva. Estes défices observam-se em indivíduos que consomem de forma crónica opiáceos, seja como tratamento farmacológico ou em caso de tratamento de substituição.

No caso dos tratamentos de substituição existem diferenças entre a metadona e a buprenorfina que devem ser tidos em consideração no processo de tratamento e reinserção dos dependentes de heroína. O tratamento a longo prazo dos utentes que tomam buprenorfina parece implicar menos riscos dos que os que tomam outros opiáceos. Vários estudos indicam que as funções cognitivas eram melhores nos utentes a tomar buprenorfina que nos que tomavam metadona. Num artigo recente publicado na revista Adictologia um grupo de investigadores da Universidade de Aveiro comparou o tratamento com buprenorfina e metadona na população com mais de 50 anos de idade que frequenta o Centro de Respostas Integradas de Aveiro e a população normal. Para isso, utilizou várias escalas de avaliação das capacidades cognitivas e da qualidade de vida, tendo concluído que o grupo em programa de buprenorfina apresentou melhor desempenho cognitivo e melhor qualidade de vida no domínio psicológico (e.g. sentimentos positivos e negativos; autoestima; aprendizagem e espiritualidade), e no domínio ambiente (e.g. segurança física; recursos económicos; oportunidades de lazer; ambiente físico e cuidados de saúde e sociais), face ao grupo em programa de metadona. Salientam, ainda, que os utentes a tomar buprenorfina apresentam-se mais estabilizados, nomeadamente quanto à abstinência, gerindo de forma mais autónoma a medicação prescrita. Em face destas conclusões, fazem referência ao facto da acessibilidade a estes medicamentos ser diferente uma vez que o programa de metadona é totalmente gratuito e o de buprenorfina ser suportada pelo utente ou pela família o que origina utentes que podiam tomar buprenorfina podem não ter acesso a essa medicação devido a dificuldades financeiras para a adquirir. Por outro lado, estes utentes em programas de substituição estão a envelhecer e os défices cognitivos podem acentuar-se com a toma de certas medicações.

Nos consumidores de opiáceos os acidentes não são uma das causas importantes de mortalidade, mas os efeitos a nível cognitivo dos tratamentos de substituição devem ser considerados na hora de iniciar um tratamento. Neste sentido, é importante que os profissionais de saúde estejam conscientes destes problemas, oferecendo uma adequada informação ao utente e seleccionando adequadamente a medicação a prescrever.

Rocha Almeida, Médico Psiquiatra, Associação Portuguesa de Adictologia
28/06/2015 (PÚBLICO |Ano XXVI |nº 9205)

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