LARGO DO PENEIREIRO
para a Inês
Tudo se perde, claro. Mas
lembrarei
seguramente os olhos vermelhos
de um gato de Alfama e todos os
poemas
que não escrevi contra mim próprio,
naquele pátio aberto a ciladas
e dissipações.
Vinho tinto, charros, paixões escarnecidas
num diálogo
de guitarras desatentas.
Tu fazias vinte e quatro anos, é certo,
e dizias
com maior razão que aqueles olhos na noite
pertenciam a uma gata. Perdida,
achada luz,
quando se percebe o desabrigo, a difícil
pertença a esta
espécie de gente,
comunidade de loucos deserdados a que
o empregado, de
bigode, chamou
«o pessoal da bebedeira». Porque isto
que não passa,
sabemo-lo bem, é a vida
ou a morte, uma perda que dura
e que não se
apaga assim, sob um cerco
de navalhas ou de inúteis,
vigorosos
sentimentos. Por exemplo o amor,
essa estranha mistura de
angústia, desejo
e novamente angústia. O não apenas sexo
de adormecer em
braços reais
que afastem para sempre o mundo.
Mas acabo por subir
cambaleante as escadas
à hora em que o vizinho de baixo
se prepara para
ser uma pessoa altamente
honrada, no talho de bairro
que lhe dá sentido
aos dias.
E não é dor, nem prazer, nem
ressentimento o que um
corpo
sente, às seis da manhã, prostrado
na lama involuntária destes
versos.
Antes um vazio imperfeito, uma
ferida sem lugar que nenhuns
lábios,
sequer os teus, saberiam calar.
Fizeste, já disse, vinte e
quatro anos.
Não esperes grande coisa da felicidade.
Manuel de
Freitas
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