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segunda-feira, 4 de julho de 2016

NA FLORESTA DO ALHEAMENTO

Fernando Pessoa

NA FLORESTA DO ALHEAMENTO

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para que há-de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente! ...
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber...
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem..., e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou actual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de nocturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo...
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita...
Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém. E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe...
Lá fora a antemanhã tão longínqua! A floresta tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro.
As árvores! As flores! O esconder-se copado dos caminhos!...
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor...
No nosso jardim havia flores de todas as belezas... — rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoilas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume... E, pasmados por cima de ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
Nós roçávamos a alma toda vista pelo fresco visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...
Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas...
O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos...
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?...
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...
O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço... Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa... E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la ela estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal...
Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.
Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais...
Ali vivemos horas cheias de um outro sentimo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza rectângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias...
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto...
Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.
Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.
Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida...
Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.
Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra...
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima... Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!...
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...
A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas — de realidade que era, a ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...
Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar...
Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...
Zumbe uma mosca, incerta e mínima...
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza sossobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece...
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...

s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa.

sábado, 8 de agosto de 2015

MARIA: Amo como o amor ama.

Fernando Pessoa

MARIA: Amo como o amor ama.

                MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.
Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas,
                                                               buscas
E encontras cinzas.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.
Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!
                FAUSTO:
Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
                MARIA:
Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?
s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
  - 99.
1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.126).

quarta-feira, 17 de junho de 2015

HORA ABSURDA

Fernando Pessoa

HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-Outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar.. Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave. como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

4-7-1913

Poesias. Fernando Pessoa.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

MARIA: Amo como o amor ama.

Fernando Pessoa

MARIA: Amo como o amor ama.

MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.
Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas,
buscas
E encontras cinzas.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.
Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!
FAUSTO:
Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
MARIA:
Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?
 
s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
- 99.
1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.126).

sábado, 24 de janeiro de 2015

Cessa o teu canto!

Fernando Pessoa

Cessa o teu canto!

Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.
Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas a cantar.
E a melodia
Que não havia,
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.
Foi tua voz
Encantamento
Que, sem querer,
Nesse momento
Vago acordou
Um ser qualquer
Alheio a nós
Que nos falou?
Não sei. Não cantes!
Deixa-me ouvir
Qual o silêncio
Que há a seguir
A tu cantares!
Ah, nada, nada!
Só os pesares
De ter ouvido,
De ter querido
Ouvir para além
Do que é o sentido
Que uma voz tem.
Que anjo, ao ergueres
A tua voz
Sem o saberes
Veio baixar
Sobre esta terra
Onde a alma erra
E com as asas
Soprou as brasas
De ignoto lar?
Não cantes mais!
Quero o silêncio
Para dormir
Qualquer memória
Da voz ouvida,
Desentendida,
Que foi perdida
Por eu a ouvir...
 

9-5-1934

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).
 


http://youtu.be/FySi6xXkNqo