sexta-feira, 5 de junho de 2015

" (...) E elenca, então por um processo de associação espontânea, aquilo de nós que não vemos ou não chegamos a valorizar devidamente: perceções, pequenos prazeres, detalhes dolorosos ou alegres, momentos de humor, curiosidades, lugares, flagrantes quotidianos. Deixo-vos com alguns exemplos: assobiar com um fio de erva na boca; limpar o prato com um bocado de pão; assistir a uma cavalgada num western; saltar à corda que duas amigas fazem girar sempre mais rapidamente; sentar-se com as próprias forças na cama de um
hospital; recordar-se já sem vergonha das imbecilidades que fizemos lá atrás; cair do pódio à frente de cem pessoas; dançar maravilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock'n'roll; passar uma noite em branco para ler até ao fim um romance; escrever à mão; perder tempo a formular melhor uma ideia; improvisar durante a semana um jantar de amigos; perder-se a contemplar um formigueiro que ferve de atividade; não fazer de conta que não se vê o sofrimento alheio; não conseguir recordar-se da sequência de uma anedota, apesar de todo o esforço; preparar uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga)herdada da avó; respirar devagar e de olhos fechados num prado; amar as palavras, degustando a sua sonoridade; reencontrar no armário o calçado de verão, quando ainda é inverno; pensar com prazer nos encontros que nos mudaram a vida; ser feliz quando os outros o são."


José Tolentino Mendonça

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